domingo, 26 de maio de 2013

Manuel Clemente, Patriarca de Lisboa
O que diz e o que dizem dele -- no Público

      Este «português suave» cativou o país. Natural de Torres Vedras, não admira que aqui o sigamos com especial atenção.  Pode, a seguir, ler-se o texto hoje saído no jornal Público.


PERFIL
D. Manuel Clemente
O intelectual estilo
“português suave”


Um homem “muito feliz”, preocupado em criar consensos (demasiado, até). Do novo patriarca de Lisboa diz-se que é culto, bondoso, sagaz. Que não é homem para se pôr a partir a loiça. O que pensa D. Manuel Clemente (e o que pensam dele)
________________
Natália Faria
__________________
A maior qualidade que apontam ao novo patriarca de Lisboa, D. Manuel Clemente, é, para alguns, também o seu pior defeito: homem de consensos, preocupado em criar pontes, mesmo quando seria preferível que as destruísse. “Não é homem para partir a loiça”, caracteriza o teólogo Anselmo Borges. “É manso, tranquilo. Há quem lhe aponte algumas dificuldades em tomar decisões, assim como se fosse uma espécie de António Guterres da Igreja”, ilustra o bispo das Forças Armadas, D. Januário Torgal Ferreira.
Quem o conhece para lá da sotaina, diz que D. Manuel Clemente é “feliz”, “moderado”, “recatado”, “sensível”. Que, “tendo nascido em família rica, soube fazer-se pobre”. Ainda sobre o homem que, a partir de 7 de Julho vai sentar-se na cadeira de patriarca de Lisboa — e, a partir daí, provavelmente também na presidência da Conferência Episcopal Portuguesa, órgão máximo da Igreja Católica em Portugal — diz-se que é “culto”, “de espírito aberto”, de convicções vincadas pelo Concílio Vaticano II.
“Tem a paixão da ‘conversa’, uma vivacidade invulgar de pensamento, um lastro aturado de investigação e leituras, mas também a leveza divertida de humorista que desenha, com dois ou três episódios anedóticos, o traço mais fundo de um rosto ou o alarde de toda a época”, caracteriza José Tolentino Mendonça, no prefácio do livro Diálogo em Tempos de Escombros (edição Pedra da Luz, Sintra, 2011), em que D. Manuel discorre sobre Portugal, a Europa e a Igreja.
A urgência de discutir o papel do religioso, numa sociedade de prática católica cada vez mais rarefeita, vir-lhe-á do tempo em que era estudante de História, na Faculdade de Letras de Lisboa. “Sabe muito sobre o século XIX, da relação da Igreja com o liberalismo. Construiu uma obra original, com uma leitura muito significativa do papel do religioso na sociedade desde o século XIX para cá”, precisa o padre Adélio Abreu, professor de História da Igreja.
Enquanto estudante, D. Manuel Martins digeriu as faúlhas do Maio de 1968 no Colégio Pio XII, onde compartilhou alojamento com fi guras como o actor Mário Viegas, o embaixador António Monteiro, os políticos Carlos Borrego, José Magalhães, Luís Sá, Marçal Grilo. “Era uma comunidade que integrava gente com vários posicionamentos, nem todos católicos, muito menos praticantes”, recua o socialista José Magalhães. “Costumava encontrá-lo na biblioteca. Hiperestudioso, focado. Mas não era marrão do género que se limita a grunhir quatro palavras. Afável e de grande tolerância, tornava-se muito fácil conviver com ele”.
O ex-ministro do Ambiente Carlos Borrego confirma-lhe o pendor marialva da juventude. “Havia lares femininos à volta e saíamos para beber uns copos e dançar. Ele alinhava. Não se conseguia identificar nele qualquer tendência para o sacerdócio”. Para a discussão de ideias, sim. “O Manuel não era pessoa para se inflamar, mas sabia apresentar as suas razões de modo convincente e pragmático. Já na altura com um pensamento muito estruturado e aberto”.
Portugal, culturalmente, é uma teima, como, geograficamente, é uma praia, feita cais de partir e chegar, chegar e partir 
                                                                                            D. Manuel Clemente
Sempre em registo “português suave” — sem estardalhaços, portanto —, lá terá sabido dirimir o conflito entre fazer avançar o namoro (são-lhe conhecidos vários) ou envergar batina. Que o conflito o atazanava prova-o o facto de ter ingressado no Seminário Maior dos Olivais, logo após ter concluído a sua licenciatura, em 1973. Ao curso de História haveria de somar o de Teologia, em 1979, e ainda um doutoramento em Teologia Histórica. Mas isso foi depois. Quando se aventurou pelos corredores do seminário, Manuel Clemente já tinha passado a curva dos 20 anos de idade.
Mas a vocação acompanhava-o desde miúdo, em Torres Vedras, onde nasceu a 16 de Julho de 1948. “Teria sete ou oito anos e recordo-me, numa vez em que fui ajudar à missa, de ter chegado à sacristia e pensar: ‘Quero ser como o padre Joaquim’”, confi-denciou, em 2007, ao PÚBLICO. Mas na base da sua vocação religiosa estava também o exemplo da sua mãe, Maria Sofia.
Apesar de ter sido esta a travar-lhe o primeiro ímpeto para se fazer padre, teria uns 13 anos. “Pensa bem, forma-te e depois decides”, ter-lhe-á dito, segundo o retrato que a revista Visão lhe traçou esta semana.
Filho de um industrial, proprietário de uma fábrica de moagens, foi com a mãe que Manuel José Macário do Nascimento Clemente manteve uma relação de adoração, até que esta morreu, aos 95 anos. Expansiva, activista católica, Sofia “era medularmente patriota, sem ser minimamente chauvinista”, segundo o próprio D. Clemente, no livro O Tempo Pede Uma Nova Evangelização (Paulinas Editora, Prior Velho, Março de 2013). “Com que alegria — dela e minha — percorremos o país em curtas viagens de Verão, fi cando eu ainda mais intimamente conjugado entre mátria e pátria”, recorda, no mesmo livro em que desfere a sentença: “Portugal, culturalmente, é uma teima, como, geografi-camente, é uma praia, feita cais de partir e chegar, chegar e partir”.
A capacidade de sair do bafio claustrofóbico das sacristias para perscrutar o que é isto de ser português, de perspectivar o país e a Europa e de lhes descortinar as raízes da crise, foi um dos atributos a justificar a atribuição do Prémio Pessoa em 2009. Tido como “uma referência ética”, foi o primeiro homem da Igreja a ser distinguido, levava já aquele prémio 22 anos de existência.
No discurso de aceitação, todo ele parido com citações do padre António Vieira, o diagnóstico de D. Manuel: “Seremos problemáticos, os portugueses, mas por nos resumirmos de mais”. Neste discurso, como em tantos outros com que pontuou a sua intervenção pública, sobressai a preocupação em fazer desviar o olhar dos heróis ou anti-heróis nacionais para as pessoas comuns. “Os heróis – ou anti-heróis – revelam-se demasiadamente maleáveis ao que sucessivas ideologias deles queiram fazer. E é por isso que, não pondo em causa o real valor que tiveram tais pessoas, a sua utilização fantasmagórica mais nos distrai do presente e menos nos serve para o futuro”.
Muito para lá de Afonso Henriques, D. Sebastião, Vasco da Gama, Camões, Salazar ou outras fi guras descomunais, a marca distintiva dos portugueses é a sua “capacidade de resistência e adaptação criativa, que só requer mais autoconfiança e acompanhamento público para ir por diante”, insiste Manuel Clemente. “Ouvi-lhe esse discurso, inteligente e sensível, e achei que seria interessante fazer-lhe uma longa entrevista”, recorda o jornalista e ex-director do PÚBLICO José Manuel Fernandes, que já com ele se cruzara antes.
Da entrevista, depois transformada em troca epistolar que sairia publicada no livro Diálogo em Tempo de Escombros, ficou-lhe a confirmação de um homem cujo pensamento “não é marcado apenas pela conjuntura mas tem a profundidade própria de um historiador”. Para José Manuel Fernandes, o facto de o novo patriarca ter tido uma vida civil antes de entrar pelo seminário ajuda-o “a perceber, melhor do que muitos na Igreja, o país que o envolve”. O bispo emérito de Setúbal, D. Manuel Martins, confirma: “D. Manuel é muito culto, estudou a História como qualquer coisa de vital, mas nunca foi um rato de biblioteca: conhece as manifestações e transformações do mundo, sabe adivinhar os sinais dos tempos”.
 “É homem nada complicado, sincero, sem cera”, adjectiva D. Manuel Martins. “A maioria dos bispos, quando assume uma diocese”, reforça D. Januário, “recorre ao melhor retratista e faz-se fotografar com os vermelhos todos, quase fidalgos do tempo de Luís XIV. D. Manuel não. Fez-se retratar, sim, mas de casaco e calças, vestido à homem, e com uma cruz simplicíssima”. Ainda D. Januário: “Sempre foi de andar na rua. Vai a uma livraria, a um café, sempre a pé”. O bispo das Forças Armadas viveu dois anos com D. Manuel Clemente no Seminário dos Olivais. “Dormia no quarto por cima do dele e, enquanto ele se levantava e fazia a sua higiene diária, ouvia-o sempre com o rádio na Antena 2. Praticava o bom gosto da música, mas sem nunca se fazer notar por isso”.
Apesar de admirar o estilo low profile do novo patriarca, é D. Januário Torgal Ferreira quem veicula a mensagem dos que lhe criticam “alguma paralisia no que à decisão diz respeito e a tendência para deixar arrastar algumas questões”. “É uma leitura legítima”, admite D. Manuel Martins, “nós gostamos das pessoas que sabem conciliar mas depois zangamo-nos quando a pessoa se preocupa em fazer pontes quando sentimos que o que era preciso era deitar a ponte abaixo”.
Sobre a pedofilia, por exemplo: “Quando há dias lhe perguntaram sobre a pedofilia dentro da Igreja, falou das vítimas mas também da necessidade de haver alguma delicadeza relativamente aos culpados, da necessidade de decifrar as razões que os levaram a tal sem pôr em causa o processo de redenção que estas possam ter iniciado. É preciso coragem para dizer isto”, elogia D. Januário.
Decorrerá isto, segundo José Manuel Fernandes, do facto de D. Manuel Clemente se caracterizar por ser alguém “que foge ao dogma e procura perceber mais do que dar sentenças”. Em 1991, D. Manuel Clemente predispôs-se a debater com José Saramago o livro O Evangelho Segundo Jesus Cristo. E costuma entremear os seus discursos com citações de Eça de Queiroz. E de Sophia de Melo Breyner e de Eduardo Lourenço.
E mantém-se com um optimismo à prova de crise. “Há nele um optimismo histórico sobre o destino dos portugueses. Ele diz que Portugal vai resistir a esta crise, por muito grave que ela seja”, reforça José Manuel Fernandes.
Sendo muito atento à questão da dignidade das pessoas, D. Manuel não é homem de fazer terramotos
Não se confunda com falta de atenção às ameaças dos tempos. Discurso directo em Diálogo em Tempo de Escombros: “A democracia é o nosso regime geral e assente. Creio que não a dispensaremos por nada, nem por algum sebastianismo que sobre e em qualquer cor do nevoeiro. Mas a democracia ligase historicamente à afirmação das classes médias, com o que estas trouxeram de autodeterminação das vidas e dos percursos.
Quando isto mesmo se reduza por circunstâncias várias, ou as escolhas se privatizem sem sentido do conjunto, a vida política diminui e oscila entre grandes vazios e possíveis golpes de quem apareça”.
Se calhar por causa da complexidade do discurso, pouco condizente com soundbites, as posições de D. Manuel Clemente não garantem abertura de telejornais. Mesmo quando alude aos temas mais delicados. “Sou céptico em relação à viabilidade do país por si só. Portugal nunca a teve. Nunca foi auto-suficiente em coisa nenhuma”, disse numa entrevista ao PÚBLICO em Setembro de 2010. Sobre a Europa: “Os problemas com que a Europa hoje se confronta obrigam os europeus a encontrar bases mínimas para viverem em comum. Se não o fizerem, correm o risco de se tornarem muito insignificantes no conjunto geoestratégico”. E, a propósito da omnipresente sombra do celibato dos padres: “Creio que as realidades cristãs do matrimónio e do sacerdócio celibatário, cada uma na sua especificidade, se manterão, ainda que requeiram um redobrado acompanhamento na presente ‘cultura’ do efémero”.
Quanto ao que dele se espera enquanto patriarca de Lisboa, José Manuel Fernandes converge no diagnóstico: “Não procura rupturas nem revoluções. Procura aproximações”. “Não se espere dele nenhum pronunciamento estrondoso, à maneira de D. António Ferreira Gomes”, avisa também Anselmo Borges.
Dado “o absurdistão em que vivemos”, Anselmo Borges diz que gostaria de ter no Patriarcado de Lisboa alguém capaz de convocar “Igreja, universidades, patronato, sindicatos e partidos para os pôr a discutir e a comunicar ao país a situação real em que este se encontra”. “A laicidade é uma aquisição fundamental, a igreja não pode fazer política no sentido partidário da palavra, mas pode ajudar a estabelecer consensos mínimos e assumir-se como voz moral”, desafia. O bispo emérito de Setúbal também aponta à Igreja o pecado de andar demasiado calada e distraída. “Precisávamos de saltar mais para a rua, de estudar melhor as causas de toda a esta situação e de as denunciar”. Ora, D. Manuel Clemente, “sendo muito atento à questão da dignidade das pessoas, não é um homem de provocar terramotos”.
Não é que D. Manuel Clemente ricocheteie a actualidade. Em Novembro, aconselhou o Governo a desacelerar a austeridade para “deixar as pessoas respirar”. Predispôs-se a fazer-se ouvir junto da troika. Mas não é expectável que mude o registo “português suave”. Basta recuperar o que o próprio disse ao PÚBLICO, em Dezembro de 2011, quanto interpelado sobre o posicionamento da Igreja face ao agravamento da crise: “Tem de haver discrição, não se pode fazer gala nem pretexto para conquistar protagonismo político. De maneira nenhuma”.

 (Público, 26 de Maio de 2013, págs. 8 a 10)

Sem comentários:

Enviar um comentário