quinta-feira, 25 de abril de 2013

 

O adeus à brisa

A RTP Premium deu uma série de programas, no canal 2, sobre escritores. Entre os últimos, conta-se Aquilino Ribeiro, Agustina Bessa-Luís, António Lobo Antunes, Fernanda Botelho, Natália Correia e Urbano Tavares Rodrigues. Vou ver outra vez o documentário sobre Aquilino, pelo menos. Vê-se Aquilino a falar e ouve-se a sua voz, um tanto fina, não condizente com a imagem que tinha e tenho dele. Não esperava, embora a voz dele seja naturalíssima. Foi um privilégio ouvi-lo. Mas o dia, hoje, calhou ser de

Urbano Tavares Rodrigues
O adeus à brisa
Um filme de Possidónio Cachapa, Filmes do Tejo II, 2008
*
Imagens do cotovelo de um rio, o rio, mais largo, com mouchões…
— … um livro de Steinbeck; quando o li, dei por mim a pensar na minha infância, que é um livro chamado A Um Deus Desconhecido.
— Isto, sou eu a cavalo, com uma boina basca, acho eu.
— Sentia-me um senhor do mundo, mas dum mundo que não era de ninguém, que eram as terras, era a minha Terra do Nunca; são anos de encantamento, de relação poético-panteísta, quando muito, com as estrelas, com os valados, com as amendoeiras, com os chaparros; fazia parte daquilo.
Eu queria, eu acho que tenho um cravo na mão, não é? […]
…    …    …
Ou é o chicotinho!? Não, isto parece-me que não é da fotografia…    …
Eu começo a descobrir, não se descobre logo; ou talvez pelos sete, oito anos, à minha volta a injustiça social. Isto aqui, parece-me que é a casa do caseiro e, eh pá, este bocado…, depois, ali, era os galinheiros, era o forno do pão e era no forno do pão que nós nos começávamos, os trabalhadores do monte não eram muitos…, o que havia era os trabalhadores que saíam com ranchos e com quem nós lidávamos muito, porque vinham para a apanha da azeitona e ali ficávamos a ouvi-los e o que ouvíamos eram todas as velhas histórias do Alentejo, coisas com bruxas, com padres, com frades, com almocreves, também a conversa política, porque eram camponeses já um bocado politizados.
·                 Fala um camponês, só se vê a parte central do corpo, com as mãos a cofiar uma espécie de haste de trigo ou seja do que for, parece entretenimento, vai tirando folhinhas do caule, encostado ao cajado, a escorar a axila esquerda. Não tem cinto; a imagem é agora do rosto, um homem moço, cara enxuta, de feições perfeitas. A voz que se ouve, um tanto fina, não é a que se espera deste homem. Uns dedos, a ponta da mão, acompanham expressivamente a fala, duas ou três vezes, de fugida, na periferia do quadro. A voz vem do lado da cena. Afinal, não é o homem moço que fala. Esse, é o futuro do passado?
— Eu, há dez anos, aí assim por esse mundo de Cristo, sem ter regalias nenhumas, trabalhar de dia e de noite, ainda nunca por acaso tive um dia de férias, nem um domingo para ir visitar a família, nem um dia de semana…
…    …    …
— Nós tínhamos uma casa de banho lá em casa, com água corrente, quer dizer, que é água corrente do depósito, que se dava à bomba para ter água corrente. [Outra fotografia.]
Isto era para o pessoal, era a casinha, era uma sanita, onde eles iam de noite ou coisa assim.
O meu irmão Miguel, que vem a cavalo, ele vinha de ir tomar banho no rio ou atravessar o rio, porque está com um robe e uma toalha ao pescoço. Nós temos só um ano e meio de diferença, eu e o Miguel. Lemos os mesmos livros, sonhámos os mesmos sonhos, depois divergimos um bocado, voltei-me mais cedo para as ideias socialistas do que o Miguel.
— As nossas brincadeiras na altura eram brincadeiras que poderia dizer brutas. Eu recordo-me que eu e o Urbano, cada um em seu burro, travávamos combates. Como eu lhe digo que eram brutas…
— Eram brutas, de verdade.
— E lembro-me de uma vez o ferir num braço, com uma, uma azagaia ou coisa que jogávamos, tínhamos que nos desviar.
— Ainda tenho uma cicatriz. Coisas disparatadas, eu, por exemplo, para montar um cavalo, que era bravo, subi para cima de uma oliveira e zás! De cima da oliveira, atirei-me e fiquei escarranchado no cavalo, depois, atirou comigo ao chão, é claro, ainda andei ali agarrado às crinas um bocado.
— Quando entrámos no liceu, andávamos sempre à pancada, porque não tínhamos tido nenhuma relação com outras crianças.
— Já havia um heroísmo sem causa em nós. Uma valentia quixotesca.
— Eram os manos Urbanos; ele muito mais briguento do que eu. E foi pela vida inteira. Porque, quando acaba a adolescência, nunca mais tive brigas físicas, a ele não, ele ainda com 60 anos, ainda briga.
— Não tinha noção do perigo. E isso reapareceu algumas vezes, ao longo da minha vida. Porque houve momentos…, eu depois passei a tornar-me mais ajuizado, mas, mas reapareceu nalgumas cenas tardias, em que eu continuei a avançar, assim como louco, contra multidões.
…    …    …    …
— Embora eu tenha participado na campanha do Norton de Matos, em 1949, tenha participado em greves universitárias, no tempo do MUD, atitudes políticas muito fortes só as tomo na campanha do Delgado. Era redactor do Diário de Lisboa, o que era uma posição óptima para acompanhar a campanha e influenciá-la. Nos textos que eu escrevia, havia uma permanente simpatia pelo Delgado; depois, um dia, faço uma declaração.  Eu, primeiro, hesitei e fui assistir a uma sessão do Arlindo Vicente. E acho que fiz bem, porque eram sobretudo os comunistas que o apoiavam, mas nós sentíamo(-no)s de tal maneira os condenados da Terra, quando à saída éramos fotografados, um por um, pela PIDE.
(Música)   (Imagens)
Estavam todos ali à volta, que era uma coisa criminosa, mas, depois, as campanhas fundiram-se, não é? E eu, então, já não tenho dúvidas, apoio o Delgado e faço uma declaração no Diário de Lisboa, em como eu, Urbano Tavares Rodrigues, apoio o Humberto Delgado, defensor do povo português e rei da Liberdade e tal e tal e tal. Grande bronca! E na Faculdade, bronca maior, ainda. Os meus alunos «Ahahah».
…    …    …    …    …
Estava numa fase na minha vida, em que eu sentia que era uma partícula no rio da história. A história caminhava para o socialismo e eu estava a cumprir, cumprir um dever.
— O Urbano é um humanista, o Urbano chega, por exemplo, ao Partido Comunista, através do coração, não chega através da ideologia.
— Apesar das minhas reservas, em relação à União Soviética e aos países de Leste, de qualquer maneira era aquilo que eu pensava que poderia, que devia ser o amanhã e que haveria de transformar-se.
[Ouve-se um discurso, vê-se imagens de cartazes de propaganda, os céus de Moscovo (?) cheios de bombardeiros da época, vermelhos, grande cartaz com a figura de Lenine, homens e mulheres cheios de vida, em postura de luta, com bandeiras. Do discurso/exortação, algumas palavras sobre ser igual, serem iguais, percebe-se mal; canções do exército russo; operários e operárias.]
Continua o mesmo filme e Urbano lê, do seu livro:
— Várias vezes de manhã, cerca das sete horas, já Moscovo havia acordado, perfilavam-se os homens vestidos quase de igual, com aquelas ligeiras gabardinas de meia estação, feitas em série. Junto às paragens dos autocarros, o trabalho principiava por todo o lado, na imensa capital dos estados da União Soviética. Ia eu, com o vento ainda frio a bater-me no rosto, até à Praça Vermelha, que, desde o primeiro instante me atraiu como um sortilégio, talvez por causa desse tom intensamente vermelho, que lhe dá nome e beleza. Krasnaia, vermelha [a Praça Vermelha], significava em antigo eslavo bela. [Deixa de se ver o filme.]
— O que há, na minha viagem à União Soviética, é uma, é uma certa ambiguidade, quer dizer, eu falo com entusiasmo do país e do povo soviético, dos povos soviéticos, a certa altura da viagem, começo a aperceber-me que nem tudo o que os guias me  [mais filme]  dizem, o que seria muito bonito, se assim fosse, corresponde totalmente à realidade, […] uma desconfiança e tenho muitos contactos com escritores, Voznesensky, Ievtushenko, etc., que me falam, falam de privações da liberdade.
[O monte]
João de Melo: — A natural insatisfação, que é uma parte do seu combate, pelas coisas, pela vida, pelos sistemas sociais, pelo seu modo de ser e de estar em sociedade e no mundo que lhe coube viver, se não é efectivamente uma das matrizes essenciais da pessoa e do criador que ele é, que ele sempre foi.
— Há-de haver qualquer coisa. Vai haver, vai haver, vai haver um novo mundo, com uma procura do socialismo, mas que poderá não surgir, a meu ver, o mesmo socialismo, que não será certamente, o socialismo da União Soviética. Foi uma experiência que não se vai repetir.
[Canção de Georges Brassens]
                                          Heureux qui comme Ulysse
                                          A fait un beau voyage
                                          Heureux qui comme Ulysse
                                          A vu cent paysages
                                          Et puis a retrouvé
                                          Après maintes traversées
                                          Le pays des vertes années
                                          Par un petit matin d'été
                                          Quand le soleil vous chante au cœur
                                          Qu'elle est belle la liberté
                                          La liberté
Eu vou ao Albert Camus, em Paris. E foi, inicialmente, uma relação de dois escritores, que se conhecem na Sorbonne, o Albert Camus disse-me: «Ah, eu gosto muito de Portugal, eu sou director literário da grande livraria Gallimard, você mora aqui no Birro Latino, apareça por lá, venha conversar comigo.» Eu, primeiro, pensei… bom, isto são coisas que se dizem por amabilidade, mas, depois, fui. O Camus, como ele era, quer dizer, com esta cara comprida, inteligente…  [mais Brassens]       [imagens de Paris]       [voz de Miguel Urbano:]
— Quando vai para França e descobre a realidade francesa do pós-guerra, ele adquire uma consciência social e política, quando volta a Portugal e descobre o Portugal fascista dos anos 50, isso marca profundamente a vida dele e a literatura dele.
— Eu penso que, se pensarmos nos contos e novelas do meu primeiro livro, A Porta dos Limites, Vida Perigosa e A Noite Roxa, há sobretudo a análise das personagens portuguesas, postas em choque ou contrastadas com a vida francesa  [imagens de ruas de Paris], mais liberta e elas, por vezes, tentam ultrapassar os próprios franceses, em determinados gestos ousados, mas lá por detrás está o peso dos preconceitos e eu o o peso dos preconceitos chamo-os para uma terra que eles renegam, que é o Portugal do fascismo.
Lê: «A cama estava já como uma tábua dura e o pescoço de Irisalva doía; doía-lhe o ombro, sobre o qual jazia, atormentado, esfibrado pelas unhas do reumático (aquele vento aguilhoante da noitinha entranhara-se-lhe no corpo e ficara lá). A boca seca, sabia-lhe a redúvias.» (Bastardos do Sol, 7.)
    [O longo e largo corredor, penumbra clara, sol ofuscante, ao fundo; do lado esquerdo, estante em toda a extensão; à direita, quadros. Ouve-se o vento.]
— Havia uma relação de grande fraternidade entre os escritores portugueses, que eram na sua grande maioria os maiores antifascistas. Isso aproximava-nos muito. É claro que há sempre preferências, predilecções, amizades, que resultam às vezes de circunstâncias ocasionais; outras vezes, de grandes afinidades, porque eu era muito amigo do Fernando Namora, muito amigo do Carlos de Oliveira, muito amigo do David Mourão-Ferreira…
O David é uma pessoa com quem eu continuo a conviver; de vez em quando, quase que me distraio a dizer: «Ó David, vê lá na estante em que data é que o Petrarca escreveu este poema tal, porque não consigo recordar. Porque eu fazia isso e ele era a minha memória segura. …    …    …    …    … São presenças. Pessoas que não morreram.
Não sendo eu um neo-realista, porque estive mais próximo do existencialismo, do surrealismo ou do onirismo, até surrealista, mas de qualquer maneira era impossível não ter, não receber determinadas influências do neo-realismo em Portugal. O neo-realismo vai muito no sentido do herói colectivo e eu, vou mais no sentido do herói individual, embora o colectivo esteja presente; mas não há uma personagem colectiva, o povo em marcha, com a sua visão do futuro…
[Ouve-se Salazar a discursar, imagens de regime.] «Só uma palavra me acode, só uma realidade existe a um nível deste acto de comunhão patriótica, e essa é Portugal.»
— Portugal era, segundo a definição de Salazar, «o jardim de modernidade da Europa»; a coisa mais hipócrita que se pode arranjar.
[Hino da Mocidade e imagens da Mocidade e de situações do regime, desfile de tropa a marchar por avenida de Lisboa; «Angola é nossa», discurso de político, os pastorinhos, boletim clínico de Salazar…]   [o vento]
— O homem não é aquilo que é e age em função disso, o homem age, a partir de escolhas e, então, o homem que ele é é aquele que pratica esses actos, que cumpre essas escolhas.
[O vento]
João de Melo: — É sabido que, do ponto de vista social e político, o Urbano é um homem de tomar partido, e foi um homem de projecto, e um homem, digamos que pagou bastante caro alguns dos seus actos cívicos, para o qual ele esteve sempre disponível, quer antes, durante a ditadura, quer depois do 25 de Abril, foi sempre um homem de acção, um homem de palavra.
Miguel Urbano: — Quando volta para Portugal, com o fascismo e com as perseguições, há um assumir, ele toma consciência de que, como escritor, tem que participar e tem que lutar.    [vento]
— Embora muito cedo estivesse perto do Partido Comunista, desse dinheiro para os presos políticos, e até para o Partido Comunista, muitas vezes, de qualquer maneira, funcionava como um antifascista que colaborava para salvar alguém, para o pôr na fronteira, para lhe arranjar uma casa, para o esconder, funcionava, dava apoio a todos os antifascistas. Falsificava-se o passaporte, quer dizer, o passaporte tinha que ter o retrato dele, mas tinha um outro nome. E, então, ele tinha um passaporte que, em Espanha, já seria de uma pessoa qualquer. Mas para lá chegares, tinha que se ir combinar à fronteira que alguém em determinado sítio previamente combinado era levado — quantas vezes eu fiz isso — era levado por um passador até à margem de lá. E na margem de lá, ele ou eles, tinham de caminhar a pé, até encontrarem o automóvel que os levava para o outro lado e onde eles estavam a salvo.
Mas as complicações, as casas onde era preciso metê-los, as pessoas que tinham medo, quantas vezes eu tive alguns escondidos em casa, apesar de minha casa ser muito vigiada, a Maria Judite a tremer de medo. Fui preso, fui preso, fui torturado, tive cinco dias e cinco noites, sem dormir. E passei quase cinco meses em Caxias, num isolamento total; sempre no cárcere, sem direito a recreio, sem ver o sol, a não ser quando ia aos interrogatórios… Muito duro. Depois, habituei-me àquela vida, fui arranjando estratagemas, para conseguir viver.
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[Urbano fala, com uns 40 anos]… — E outros, que tiveram torturas muito mais dolorosas, não tenho o direito de me alongar em especulações sobre o que me aconteceu, porque eu fui um dos muitos que passaram por lá e que realmente, pois, resistiram, porque tinham uma razão para isso, duas razões, até. Uma delas, sobretudo o companheirismo, o não querer denunciar ninguém. E a outra é o respeito por mim próprio, que é qualquer coisa, também, de importante.  [Volta o Urbano de agora.]
— Fui muito, muito silenciado; tive livros apreendidos, livros proibidos de figurarem nos escaparates,
[Livros em cima de uma mesa; a seguir, imagem de compartimento sem janelas, paredes de blocos (de pedra?), não rebocados. Em primeiro plano, duas cadeiras de estrutura tubular, assento e encosto em fórmica; o resto é um montão de detritos, cinzas?, e dois ou três elementos de um móvel, mesa ou cama.]
— […] estava já, estava à espera daquilo. …    …    …    … A primeira vez foi uma coisa insignificante, foi /…) ser signatário do programa para a democratização da República. Eram comunistas, eram socialistas, aquele grupo… Mário Soares também lá estava, também foi preso; então, fui preso, neguei tudo. Só me davam uma esferográfica, uma vez, tirei a mina; fiquei com a mina, com aquela coisinha frágil, com que se escreve muito mal, e comecei a escrever em papel higiénico duro; onde se podia escrever. Se fosse do outro, enrolava e não seria possível.    …    …    … Os Contos da Solidão. Alguns…, dos Contos da Solidão.
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Durante muito tempo, eu escrevi quase em transe, muitas vezes. Como se uma voz, vinda não sei de onde, portanto até do Inconsciente, que me ditasse certas páginas e são as pastas melhores que eu escrevi, são pastas desse tipo. [Urbano, aqui, disse mesmo «pastas» duas vezes, onde esperávamos «páginas».]
[Imagem de canavial, a parte superior das canas.]
— Devia ser aí dos cinco, seis anos, pois…, quatro, talvez…    … Lembro-me de coisas que me marcaram. Lembro-me de coisas que me marcaram, que era a minha descoberta do sofrimento, que me assustava, que eu não compreendia, mas que estava na minha frente. A dor dos outros.
[Fotografia da mãe com um bebé; mais duas fotografias com bebé, face colada à face; o bebé sentado em encosto almofadado; canavial; o vento.]
A minha mãe ficou connosco no Alentejo.
Miguel Urbano: — A minha mãe, como eu digo, era muito conservadora. Então, contratou uma professora. Nós aprendemos a ler e escrever em casa. Fomos fazer exame de admissão, como era na altura, preparados por uma professora…
Urbano: — … tradicional, burguesa, portuguesa, com um sentimento de classe muito forte, mas eu conheci uma outra mãe; a mãe, que, pouco a pouco, foi evoluindo, na medida em que via um filho exilado, o outro, a ser constantemente preso, perseguido, e ela começou a evoluir, colocando-se contra o regime e modificando-se, até certo ponto, tanto quanto é possível uma pessoa modificar-se.   …    …  Foi cedendo, e ficou uma pessoa muito maia amiga e mais acessível. E dessa outra mãe, eu tinha uma grande saudade. [O canavial, o vento; fotografia do pai, com os seus 40 anos.]
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— Ele ia lá passar fins-de-semana, às vezes ficava uns dias, trazia-nos presentes, soldados de chumbo, que nós apreciávamos muito, brinquedos; nós tínhamos poucos brinquedos, eram feitos por nós, com madeira, com barro. Quando o meu pai foi preso, depois do encerramento do Mundo e da Sé, o meu pai participou na revolução do 3 de Fevereiro de 1927
[Outra fotografia do pai, já mais velho — tem um ar um bocado sério, um pouco pessimista, compreensivo, de pessoa boa.]
e a partir daí, o meu pai vai viver connosco. Durante algum tempo, resolve não ser jornalista e tentar administrar o monte, do que ele não se sai muito bem.
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Miguel Urbano: — Que lembro-me, até, a minha mãe contar, como o meu pai tinha sido secretário, que ele uma vez tinha ido jantar. Levava o menino ao colo, que era muito pequenino, ao Palácio de Belém, com o Teixeira Gomes e que depois houve uma cena tremenda, que ela ficou envergonhada; o Urbano agarrou uma colher de prata e não a largou até que o Teixeira Gomes, o presidente, disse: «deixe lá o menino levar a colher, que isso não tem importância nenhuma e tal…, senão ele fazia um berreiro tremendo e não largava aquilo.
[Fotografia de Teixeira Gomes, cotovelo sobre a lareira, de perfil, ao lado de um busto de homem, também de perfil. Decoração clássica.]
— Ai, a colher de prata, que giro! Como ele se lembra.
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— Eu descobri os livros com dedicatórias para o meu pai, que foi muito amigo dele e… e comecei a ler aquilo muito cedo. É um dos maiores ironistas da literatura portuguesa. Uma fabulosa ironia, um extraordinário sentido de humor, acutilante e crítico, que está presente na visão que ele nos dá da burguesia algarvia, em quase todos os seus livros e até na peça de teatro Sabina Freire, mas, ao mesmo tempo, atravessou um século.
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O livro e o leitor
— Pensa o seguinte: pensa que um livro, quando encontra o último leitor, vai enriquecer extraordinariamente esse leitor, ampliar a sua personalidade, dá-lo a conhecer a si próprio, vai estabelecer um contacto entre ele e o mundo e não houve intenção nenhuma, por parte do autor do livro, em fazer isso; só quis criar uma coisa bela. A coisa bela tem que ser profunda e inteligente. Contudo, quem lê um livro, muitas vezes, no final do livro, começa a ser um homem diferente. Eu fiz grandes leituras dos surrealistas franceses e desenvolvi, assim, um grande interesse por uma poesia, até certo ponto, enigmática, ambígua, que dá um grande lugar ao sonho e que está muito perto da música.
Há alguns dos poemas da Clepsidra, que são verdadeira música, que criam mistério, é preciso como que recriar um puzzle.



… a uma afogada

À flor da vaga, o seu cabelo verde,
Que o torvelinho enreda e desenreda…
O cheiro a carne que nos embebeda!
Em que desvios a razão se perde!

Pútrido o ventre azul e aglutinoso,
Que a onda, crassa, num balanço alaga,
E reflui (um olfacto que se embriaga)
Como em um sorvo, múrmura de gozo.

Não sei se notou que é um poema muito carregado de uma sexualidade quase necrófila, quer dizer, e ao mesmo tempo é um poema de luta, de um corpo a apodrecer, com o mar purificador. Um dos poemas mais lindos que ele tem, que é quase só música, é aquele que «ao longe os barcos de flores…». É lindíssimo, mas eu agora, vou ver se o procuro.    ...    ...    ... Não encontro.
A passagem do tempo
A passagem do tempo, vi-a sempre como um inimigo, quer dizer, o tempo é aquilo que está concorrendo a cada momento para a degradação de todos os seres humanos, quer dizer, para a trajectória para a morte. Mas não só isso; os grandes afectos, os grandes amores, que o tempo vai esvaindo, vão alterando, eu acho que tem uma presença muito forte em tudo o que eu escrevi, o tempo ligado ao amor e à morte.
[Imagens e som de Urbano, na televisão.]
«Estou persuadido de que a esperança de grande maioria dos portugueses e das classes trabalhadoras está efectivamente na promessa que me foi feita de que possam ser asseguradas todas as liberdades fundamentais, o direito de expressão, pleno, e de que haverá eleições livres…    …    …    …»
Vivi muito intensamente a vida, no sentido do risco, de que já falámos, no sentido da adesão à luta por uma causa que eu acho justa e digna do nosso esforço, e também como festa. Por exemplo, uma manhã de natação, quando eu podia nadar; no Outono, numa…, no mar ainda tépido ou numa piscina um pouco aquecida…
[Vê-se o cartão de sócio do Clube Nacional de Natação:]
SÓCIO N.º 3887   EFECTIVO
Ex.mo  Sr. Urbano Tavares Rodrigues
                             O PRESIDENTE                                  O SECRETÁRIO
ASSINATURA DO SÓCIO
_______________________
Era a glória de viver, para mim, quer dizer, como estar com uma bela mulher… Segundo me explicou uma vez uma bela mulher… [na análise]: Tu não és nada um Dom Juan característico, mas tens um ar de menino abandonado, que precisa de ajuda, que nos deita muito abaixo. Atraía-me tudo. Quando eu tive tudo, ara a parte, a parte erótica e era ternura, companheirismo…    …, a compreensão, a compreensão do outro.
As mulheres
Isabel Ruth
«O facto de ele ser amável, sedutor, que é, são facetas de uma pessoa, que é mais completa, não é? E são facetas. Lembro-me de haver um fascínio, de parte a parte.
E havia um interesse em ele saber quem eu era e eu com certeza, tinha curiosidade, até porque a palavra «escritor» também fazia muito sentido para mim, não é? O que ficou em mim foi o carácter dele, a gentileza e a amabilidade.»   [Imagem de Urbano novo, de gabardina branca.]
Urbano: «Mas então ainda Irisalva cria nele, como num deus da Primavera, mesmo que a lucidez sopeada a advertisse de que Delfino se enfastiava e se evadia, dia após dia, para mais longe ou para a melancolia de uma estreita soledade, de uma irremediável impotência.» (Bastardos do Sol, 3)
[Passam rostos de mulheres no ecrã.]
«Provavelmente, havia em mim uma capacidade de sedução, uma certa riqueza libidinal, digamos, que me impelia muito para experiências amorosas. Sempre as achei mais interessantes do que os homens, no sentido de que, como estavam a começar a sentir-se humilhadas e presas, havia uma vontade de libertação. Isso tornava as mulheres muito interessantes, em finais [vão passando imagens de mulheres] dos anos 50, princípios dos anos 60, e essa vontade de emancipação fazia com que elas já fossem interessantes; eram interessantes, humanamente [pinturas, com mulheres], tal como eram interessantes, do ponto de vista literário.
«Há mulheres que têm uma forma de beleza sua, que encanta, sem ser a beleza convencional.
[Na praia, mulheres com Urbano e outro homem novo, que pode ser o irmão.]
«Portanto, houve mulheres com quem eu me senti perfeitamente encantado, sem serem belezas perfeitas.
[Fotografia de Maria Judite de Carvalho.]
«Eu vivi com duas intelectuais, quer dizer: são os meus casamentos, a Maria Judite e a Ana Maria. E ambas respeitaram sempre a minha solidão de escritor, sentindo que ela era importante e entendendo-a. Sempre que possível, escolhi espaços privilegiados, às vezes, até, para evitar, justamente, tudo o que em casa traz, o telefone, o barulho, as pessoas que chegam e… e… é com…, escrever o meu romance para outro lado; para um hotelzinho na Praia da Rocha ou em Sesimbra.
«Mesmo como uma figura solitária e solidária. Quer dizer: eu, a minha oficina de escritor é também uma forma de solidão, … solidária, mas que pode não ser solidária em determinados momentos, pode ir quase até ao desespero, ou à angústia extrema. Escrever, (é) isso mesmo.
[Fotografia de multidão, em comício ou grande manifestação pública, pequeno filme com cenas militares do 25 de Abril, na rua, em Lisboa.]
«O 25 de Abril, para mim, corresponde à realização de um grande sonho da minha vida. Dar conquistas à liberdade.»
Ouve-se:
Aqui, posto de comando do Movimento das Forças Armadas. A todos os elementos das forças militarizadas e policiais, o comando do Movimento das Forças Armadas aconselha a máxima prudência, a fim de serem evitados quaisquer recontros perigosos. Não há intenção deliberada de fazer correr sangue desnecessariamente, mas tal acontecerá, caso alguma provocação se venha a verificar. Serão nomeadamente responsabilizados todos os comandos que tentarem, por qualquer forma, conduzir os seus subordinados à luta com as Forças Armadas.

[Voz de João de Melo]
«Tinha acontecido o sonho grande, pelo qual ele se tinha batido, tinha lutado. Eu lembro-me duma alegria dele, uma alegria perfeitamente de rapaz.»
[Imagens, filme, do 25 de Abril.]
UTR: «Foi uma camarada, uma jornalista da República, que me telefonou: “Olha, a Revolução está na rua.” Eram duas da manhã. E eu, vesti-me a correr e entro na festa revolucionária, com uma grande euforia.
[Ao mesmo tempo que as imagens do 25 de Abril, continuam a desfilar no ecrã, ouve-se:
Grândola, vila morena,
Terra de fraternidade,
         O povo é quem mais ordena,
Dentro de ti, ó cidade!

Dentro de ti, ó cidade,
    Dentro de ti, ó cidade…]
«Eu acompanho, como jornalista, a saída dos presos de Caxias e vi, logo, a primeira [… saída dos presos de Caxias, filme] tarde, não é, com grande entusiasmo.»
Fala João de Melo:
«No mesmo dia em que chegou Mário Soares, de Paris, após o 25 de Abril, que nos encontrámos, uma multidão enorme, em Santa Apolónia, e de toda aquela gente, eu acho que a pessoa mais feliz era o Urbano Tavares Rodrigues.»
UTR: «E é uma grande enxurrada, onde há coisas lindas, mas onde é preciso viver aquilo tudo, mas foi, resumindo numa palavra, a festa revolucionária, foi para mim um período de alegria intensa e profunda,
[Imagens de murais, bem coloridos]
em que realmente parecia mesmo ça va, ça marche, como se dizia na Revolução Francesa, isto vai mesmo.
«Vi tudo isso, vi tudo isso, vi com angústia, vi com paixão e, por vezes, com uma alegria quase indizível, de tão grande que era, tanto correspondia ao sonho da minha vida.
[Imagens, soldado com G3]
«Uma revolução é feita por heróis, por entusiastas, mas é feita, também, por oportunistas, por, por bufos, está lá tudo.»
[Imagens de filme — Um homem jovem, sentado a uma mesa, com outro ao lado, fala, em sessão de trabalho político]
É urgente que os nossos governantes tomem medidas firmes e dêem garantias a quem quer trabalhar e fazer produzir a terra. Quem é que quer trabalhar e fazer produzir a terra? …   … são os trabalhadores. Ou são os donos das terras? … De maneira que, depois, [ouve-se uma voz …«não queremos a fome …»] não queremos a fome, não queremos a miséria.
[Pequeno filme: um homem fala, no campo, para nós ou para alguém atrás da câmara]
Depois, é claro, há muita malta que vê pouco e diz assim: — hã e tal, na sei se se há-de trabalhar, se na hei-de trabalhar. Está a perceber?
[Outra pessoa fala, o homem de antes trabalha, agora, com um tractor]
A gente, ouvíamos dizer, e por bocas, por fora: — Anda-se a tirar isto do Monte Branco, anda-se a tirar aquilo do Monte Branco; onde se inclui cevadas, vinhos, etc., e outras coisas mais. E, então, o pessoal da Atendeira reunimo-nos todos e convidamos todos os que queriam, aqueles, entrar na cooperativa e já alguns estavam inscritos e convidamos e atão vamos amanhẽ tomar aquela herdade, ainda alguém na chegue lá e na [……………].
[Voz do entrevistador]
Vocês aprenderam, vieram para a Assumada, e da Assumada, o Monte Branco, precisamente para evitar que algumas coisas mais saíssem, não é?

— Evidentemente.
[Imagens de um monte, deve ser o da família de Urbano]
Urbano: «Desejava uma reforma agrária, mas não era assim que a imaginava. Era uma coisa mais certinha. E aquilo feito, é uma reforma, uma revolução agrária. E empolgante, que nos arrasta. E nunca nos teriam tocado em nada do que era nosso. Nós tínhamos lutado pela reforma agrária, antes e depois do 25 de Abril, e achávamos que devíamos dar o exemplo; porque era uma questão de coerência. E assim o fizemos. Às vezes, pergunto-me se, como, se tinham grande amor àquilo, se não teria sido um pouco de romantismo. Romantismo ou não, não me arrependo.
[Voz de Urbano]
As terras serão simples e as águas murmurantes, piquenas as barreiras e as árvores de gigantes. Múltiplo e forte viverá nas vilas um povo de pastores e camponeses. Não mais as igrejas guardarão os Nosso Senhor no mundo fugitivo, chorando como um ser ferido, à traição. E aos desconhecidos que baterem às portas, abrir-se-ão casas acolhedoras.
«Como homem, eu fui um homem que viveu profundamente empenhado, lutando desde muito cedo contra o fascismo, contra a opressão, e em circunstâncias por vezes muito difíceis, lutando dentro do meu próprio campo, até, fazendo críticas, mas, mas sempre com um objectivo que é a sociedade onde o homem é irmão do homem.»
[Imagens de um bebé, dando passos, a brincar com uma bola colorida — muito grande, de plástico fino, com gomos cosidos, das que se enche, soprando. Marca RUCA, com um sol — e a mexer numa almofada. Deve ser o filho.]
*
Silêncio, …    …, silêncio. Depois, diz umas palavras e … pausa. Umas palavras …, pausa. Urbano de pé, ao meio do corredor, direito, os pés juntos, de costas para a parede, ao lado direito de quem está a ver. Os últimos quadros:
— O bebé. Há um momento em que o bebé nos olha de frente. Os seus olhos;
— Urbano, de corpo inteiro;
— O perfil escuro, dos pés até aos joelhos ou pouco menos;
— Urbano, da zona da cintura para cima.
É com esta imagem em contraluz e em perfil que vamos ouvir as últimas palavras de Urbano, neste documentário:

«A primeira lembrança feliz, …    …, a primeira …    …    … bom, quando ela se apoiava primeiro numa primeira vez que montei a cavalo.» [cavato?]
*
A luz entra no aposento e desenha um corredor de luz. A metade esquerda está completamente escura. Na direita, a luz exterior reflecte-se nos espelhos, dando alguma claridade. Ao fundo, uma porta de vidros grandes, as guarnições de madeira pintadas de bege, alta, encimada por um tímpano grande em semicírculo, deixa entrar a luz de fora quase ofuscante, para quem vê este quadro, do lado escuro.
Urbano é um recorte todo negro, na contraluz. Uma sombra, como uma tábua deitada no chão, continua o escuro da silhueta ao longo do corredor, até ao seu fim, perto do observador. A sombra deixa de fora as pontas dos pés, percebendo-se perfeitamente a sua delineação.
*
Tela negra.
Passam mais uns segundos. Em letras brancas, sobre a tela negra, em baixo, em dimensão relativamente modesta:
                                                                                                                    Para o Urbano
*
Segue o genérico e ouve-se a canção tradicional «Olha o passarinho/Que bem que ele canta/Quando está cantando/Parece que tem/Uma guitarra na garganta».
Quando Urbano diz as últimas palavras, «a sociedade onde o homem é irmão do homem», começa a ouvir-se um som de fundo, espécie de ventania, que chega abafada do exterior, mas se vai afirmando um pouco mais. Este som de fundo mantém-se, sob a canção e o genérico.
           Revisionando o filme, verificamos que este vento se ouve, se vai ouvindo muitas vezes, constituindo como um aviso, do princípio ao fim. Despertos e receosos. Lembra-te, homem!
*
Realização
Possidónio Cachapa
Fotografia
Cláudia Varejão
Câmara
Cláudia Varejão
Possidónio Cachapa
Som
José Reis
Adriana Bolito
Montagem
Rita Figueiredo
Montagem Som e Misturas
Hugo Leitão
Produção
Maria João Mayer+Francisco d’Artemare
Possidónio Cachapa
Coordenador de Produção
Fátima Correia
Correcção de Cor
Pop Filmes
Designer
Rui Guerra
Produtora Delegada RTP 2
Olga Toscano
Fontes Documentais
Arquivo RTP
Maria da Conceição Neuparth

Documentalista RTP
Vera Paiva
Músicas
«Partisans Song»
RUSSIAN RED ARMY
«Grândola Vila Morena»
Música e letra de José Afonso
«Heureux qui comme Ulysse»
Música e letra de Georges Brassens
Depoimentos
Urbano Tavares Rodrigues
Miguel Tavares Rodrigues
João de Melo
Isabel Ruth
Agradecimentos
Ana Santos
António Santos Tavares Rodrigues
Herbert Telo
Joana Cachapa
Luís Afonso Cruz
Miguel Valverde
Sofia Neuparth 

(Mensagem modificada, por completamento da transcrição, correcção de erros, acrescento de algumas explicações intercalares e eliminação de outras, em 28-4-2013.)



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